sexta-feira, 24 de dezembro de 2010


O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.
Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.
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Aplastamiento de las gotas

Yo no sé, mira, es terrible cómo llueve. Llueve todo el tiempo, afuera tupido y gris, aquí contra el balcón con goterones cuajados y duros, que hacen plaf y se aplastan como bofetadas uno detrás de otro, qué hastío. Ahora aparece una gotita en lo alto del marco de la ventana; se queda temblequeando contra el cielo que la triza en mil brillos apagados, va creciendo y se tambalea, ya va a caer y no se cae, todavía no se cae. Está prendida con todas las uñas, no quiere caerse y se la ve que se agarra con los dientes, mientras le crece la barriga; ya es una gotaza que cuelga majestuosa, y de pronto zup, ahí va, plaf, deshecha, nada, una viscosidad en el mármol.
Pero las hay que se suicidan y se entregan enseguida, brotan en el marco y ahí mismo se tiran; me parece ver la vibración del salto, sus piernitas desprendiéndose y el grito que las emborracha en esa nada del caer y aniquilarse. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adiós gotas. Adiós.


Trecho de Histórias de Cronópios e Famas, de Júlio Cortázar´,
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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010




Eu queria comer essa hora.

Queria comer essa hora de agora, como se ela fosse uma ameixa, toda cor de vinho, sumarenta, quase explodindo de tanto querer-ser.

Morder o relógio, os ponteiros, mesmo o ar em volta dessa hora. Mastigá-la, comê-la, seduzi-la. No entanto, um minuto mais e ela acaba.

Eu espero o dia seguinte, espero que a hora volte. Quando a vejo outra vez é aquele mesmo sentimento: exaltação, ansiedade, desesperp, o sangue quase saltando das veias, tanta intensidade de vida querendo jorrar de mim.

Sei que tem gosto enfim, sei que tem gosto novamente, e fico esperando poder prová-lo. Pego-me imaginando e, enquanto isso, pronto; ela se foi, acabou-se. Resta-me só o amanhã.

Não entende o que eu digo? Não precisa. Só penso em dividir um pouco isso que sinto ao contemplar o relógio e vê-la ali marcada, de novo cheia de sensações. Não é a hora do presente, não é a hora em que algo acontece, é a hora do instante que vem logo antes do presente, do vir-a-ser, aquela em que a consciência de que se sente, de que se é vivo, de que se respira, ganha força, invade e toma tudo que encontra.

Depois, são as horas que se seguem, depois é retomar a vida, depois é o ritmo de ontem que tende a voltar. Pouco importa o que vem depois. Eu quero comer essa hora de agora, torná-la parte de mim, esmiuçar o seu segredo de antecipação. Eu quero tomar o suco que escorre dessa hora e já me derreto toda em segredos ainda não formados a partir dela. Eu quero comer essa hora e poder esquecer do que não será depois.






("O resto é mar, é tudo que eu não sei contar")
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domingo, 5 de dezembro de 2010

Volaná e Valené

“desamparada, ocorriam-lhe pensamentos sublimes, citações de poemas de que se apropriava para sentir-se no próprio coração da alcachofra, por um lado, I ain’t got nobody, and nobody cares for me, o que não era certo, já que pelo menos dois dos presentes estavam mal humorados por causa dela e, ao mesmo tempo, recordou um verso de Perse, algo como Tu est là, mon amour, et je n’ai lieu qu’en toi, onde a Maga se refugiava, apertando-se contra o som de lieu, de Tu est là mon amour, a suave aceitação da fatalidade, que exigia fechar os olhos e sentir o corpo como uma oferenda, algo que qualquer um podia tomar e manchar e exaltar, como Ireneo, e que a música de Hines fazia confundir com manchas vermelhas e azuis que dançavam por dentro de suas pálpebras e que se chamavam, não sabia bem por que razão, Volaná e Valené, à esquerda Volaná (and nobody cares for me), girando loucamente, em cima Valené, suspensa como uma estrela de um azul pierrodellafrancesca, et je n’ai lieu qu’en toi, Volaná e Valené, ... essas grandes carícias nervosas, I ain’t got nobody, nas costas, nos ombros, os dedos por trás do pescoço, entrando as unhas no cabelo e retirando-as pouco a pouco, um turbilhão final, e Valené se fundia com Volaná, tu est là, mon amour and nobody cares for me”.

(trecho do livro O Jogo da Amarelinha, Júlio Cortázar)

***
Volaná

Despertou porque ela se contorcia a noite toda resmungando sons indecifráveis. Estranhou um momento o corpo de mulher estendido ao seu lado e se levantou. E o que fazer à uma hora dessas? Acender um cigarro e fumar na janela, percebendo que alguém no andar de baixo esquecera a televisão ligada e concentrar-se num ponto cego da rua; o cenho franzido.

Seus pensamentos se esfarelavam como pequenos pedaços de um tecido muito fino que se espalhavam pelo chão do quarto. Ele olhava esses pedacinhos todos, pesaroso, uma lástima vê-los assim e não saber juntá-los, costurá-los novamente num pano contínuo. Ficava olhando imóvel, um soluço preso bem no meio dos dentes. Quem sabe não seria preciso chorar até transbordar o quarto e fazer boiar todos aqueles retalhos?

Quis acender outro cigarro e no movimento de alcançar o maço derrubou com o braço um livro que se apoiava na beira da estante. Ela despertou com o barulho e encarou-o assustada. Tinha olhos marejados, sibila de águas, presságio de lágrimas. Ou seria preciso que alguém chorasse por nós? – pensou olhando-a bem enquanto ela se esfregava na cama, epidermicamente se preparando para levantar. Levantou- se e saiu do quarto dirigindo-lhe algumas palavras incompreensíveis, naquele idioma que ela inventara para se comunicar nas madrugadas. Agora era esperar que ela resolvesse voltar à linguagem comum e ambos poderiam, de comum acordo, dar novo início à trapaça.
Passava a mão pela testa enxugando um suor gelado; quão fundo teria que se cortar para encontrar substância; um começo, um fim, ou mesmo um nome para a coisa. Escrever na pele registros de noites insones para depois rasgar letra a letra extraindo sentidos viscosos de sangue pingando. Quantas vísceras teria que comer em frente ao espelho nu até chegar a uma matéria palpável? Arrancando não sabia bem o quê, mas arrancando até o osso. O que alcançava o vazio?

Ela cantava na cozinha e interpunha em sua cabeça o som de sua voz e de vidro contra a pia. “Ela poderia se calar se com um grito eu...” Por um momento... quem era ela mesmo?

je ne vais plus pleurer
je ne vais plus parler

Uma mão firmemente fechada sobre uma barra metálica...

ne me quitte pas
ne me quitte pas

... a outra já solta pendendo no vazio.

Poderia recuar agora de todo o quarto, traçar em torno de si uma circunferência rejeitando todo o fora, relegando-se a um canto mais fundo, o mundo debaixo das pálpebras que os olhos voltados para dentro reconheciam e acatavam em silêncio.

Foi só depois que abriu os olhos e a viu parada ali, o corpo recostado na soleira da porta, uma xícara de café na mão, acompanhando com os olhos os movimentos dos pedaços de pano que se erguiam do chão e flutuavam pelo quarto. Até que ela sentou na cama – os retalhos se ajeitavam novamente no chão – e começou a lhe narrar o sonho que tivera. Voltara a usar o idioma comum. E enquanto contava, tremia um pouco e chorava de leve. Agora era preciso parar um pouco, esquecer tudo, guardar os retalhos num canto, passar as mãos pelos seus cabelos, tentar acalmá-la, todas essas coisas, “essa leve tristeza satisfeita de voltar a ser o de sempre, de continuar, de se manter flutuando contra o vento e a maré, contra o chamado e a queda”.

A não ser que.

***


Valené

Estava sendo sugada para dentro do retrato que cada vez parecia maior, seu corpo todo manchado, desfeito em pigmentos que se soltavam um a um em direção ao quadro. Desesperava-se; queria conte-los, mas já não tinha mãos, pediria ajuda, mas perdera a boca...

Um barulho forte a fez acordar, um peso caindo, “ele ia subitamente me esmagar”. Acordou num salto, a sensibilidade toda na cavidade auricular. E ele parado fumando em frente a janela, mariposa de insônias. Ela se perguntava por que ele não a havia ajudado quando o retrato a absorvia.

Saiu da realidade impressionista e adentrou o sonho do quarto.

- Vou fazer um café – disse levantando-se.

Je t’inventerai
des mots insensés
que tu comprendras

Docemente pisando as imagens sonhadas. Calando-as à força do blues.

A vida, seqüência caótica de quadros sobrepostos. “Moça semi-desperta preparando café” – quadro impressionista no qual predomina a cor azul dando o tom da atmosfera. A exatidão do ambiente contrasta com a vaguidão no olhar da moça captado pelo artista. Uma tristeza pálida.

Olhava o café. “Se minha vida escorresse assim... eu não me daria mais ao trabalho de ser sólida. Repousaria num canto o meu esforço de ser uma, de me manter junta, toda manhã colando caco a caco e voltando a existir. Assistiria meu corpo abandonado cair e cair e cair”. Pegou a xícara e caminhou de volta ao quarto.

Parou um instante para observá-lo da porta. Ele de olhos fechados parecendo pesar o ar de cada respiração. E ela dando voltas inúteis pelo quarto com os olhos (havia algo pairando no ar? Uma fragilidade tão iminente...).

Ele abriu os olhos e ela se sentou ao seu lado. “Então meu corpo ia se soltando como se fosse feito de vários riscos de tinta que de repente se soltavam de mim, atraídos por um quadro bem grande que pendia naquela parede...” – narrava-lhe o sonho que lhe perturbara a noite. As mãos dele pendiam sobre seu rosto como trapos, ajeitando-lhes o cabelo, enxugando-lhe as lágrimas. O tempo ia se seguindo a leves tropeços, correndo esfumaçado. O pêndulo cumpria o seu vaivém ajeitando as coisas em lugares próximos e convenientes.

Até que.


***


“Fazíamos amor como dois músicos que se juntam para tocar sonatas... era assim mesmo, o piano ia por um lado e o violino ia pelo outro, e disso saía a sonata, mas veja, no fundo, não nos encontrávamos...

... mas as sonatas eram tão bonitas”


(trecho do livro O Jogo da Amarelinha, Júlio Cortázar) 

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Matizada em tons de tempestade e vastidão. Um som que morreu manchou de escarlate meus cabelos e machucou com o estalo minha boca violeta, fazendo escorrer meu sangue roxo. Foi uma gota que tingiu meus dedos, até então amarelo trigo, ao rolar de leve pelo meu braço alaranjado. Caiu no chão e, engolida pelo asfalto, fez a rua querer chuva que veio solícita. As gotas de chuva pairaram um instante ante meu rosto azul oblíquo e se jogaram logo em seguida, numa avalanche magenta. Desbotei-me. Sou cinza claro.

terça-feira, 23 de novembro de 2010





"Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que estou querendo dizer com isto. Confio na minha incompreensão que me deu vida liberta do entendimento, perdi amigos, não entendo a morte. O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas são e sentem? Vivo-as mas não tenho mais força. Não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Seria trair o é-se. Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu. Está fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silecioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade - o it."


Trecho do livro Água Viva, Clarice Lispector
Foto: Clarice

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e começa assim:


sábado, 13 de novembro de 2010

Deixa Maria

Maria queria escrever uma estória doce, daquelas que enche de vida os pulmões de quem lê. Mas não encontra esse possível que em algum lugar deve existir.

Maria queria sentir o corpo inteiro pulsando de um sangue bem quente e vermelho de novo. Maria queria pular do ponto mais alto, sentindo as farpas de si soltando-se no ar. Queria sentir que o impossível estava ao alcance de suas mãos, que cada novo hoje, pudesse vir tão cheio de um mesmo que a renovasse sempre. Maria queria chorar bem alto quando o desepero viesse e queria rir até doer o peito. Abrir a boca debaxo d'água e engolir o mar inteiro. Acordar arrancando os cabelos de excitação. Sentir o gosto de sal. Queimar o medo de perder, o medo de ter, o medo de quem tem que partir, o medo de quem só pode ficar.
Maria queria sentir raiva, pena, desprezo, candura, amor quem sabe. Maria queria sentir qualquer coisa. Maria só queria a certeza de que ainda sente. Trazer a cabeça cheia de qualquer coisa, qualquer coisa.
Já que não havia raiva, nem tampouco amor, então não havia pecado e não havia perdão. Ficava um nada latejando. Não, o nada não fica nem latejando. O nada é só essa ausência. Até dela mesma. Que não se sabia.
Maria acreditava que não estava ali e forçava-se a acreditar que existia em outro lugar. Era só estender a mão e encostar.
Maria suspirava. Enchia o peito de ar e depois soltava. Esperava um vento súbito que lhe tirasse do chão. Ela que estava cada vez mais fincada na terra. Esperava que pudesse dormir e, ao acordar, alguma coisa fizesse sentido, qualquer coisa.
Ele dizia que, todos os dias ao acordar, repetia para si mesmo: "que seja doce", sete vezes seguidas. Maria já se cansava. Esta noite dormiria depois de muito tentar e, ao acordar, repetiria sete vezes seguidas: "que tenha gosto, que tenha gosto, que tenha gosto..."

domingo, 31 de outubro de 2010

Muß es sein?



"Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a sempre parecer um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.


Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Poder viver apenas uma vida é como não viver nunca".*




Es muß sein! Es muß sein! (Tem que ser assim!). O último movimento do último quarteto de Beethoven.
Muß es sein? (Tem que ser assim?)


Quem diz?


*(trecho do livro A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Entre ideias, farrapos, língua e sangue

Existe uma palavra que vem antes da palavra. Um tapa que vem antes de qualquer gesto. Uma dor que chega antes que qualquer explicação lhe possa ser dada.
Existe um já que é antes desse segundo de agora. O instante-já de Clarice.
Deixe-me usar Clarice, sim?
Dá-me tua mão.
Antes que eu sufoque, diga qualquer coisa.
Dá-me tua mão. Prova que estou cega e que alguma coerência, algum sentido, existia dentro daquele turbilhão. Prova que eu estou errada e mostra alguma verdade em meio a todas aquelas frases soltas de outrora.
Dá-me tua mão e mostra que o gosto de baunilha não precisa ficar assim tão amargo.
Prova-me com a língua e com o sangue. Não com farrapos e ideias.
Dá-me tua mão e vê se o calor da pele da minha mão consegue te mostrar que ainda há vida em mim. Daí, mostra-me também. Mostra-me a vida que talvez ainda circule na minha mão. Mostra-me porque eu já não a vejo.
Acalma esses dias de pressa.
Dá-me a tua mão, teu golpe de graça, neutro artesanato.
Ou se tudo que tem são as ideias e os farrapos, guarda-os contigo. Deles eu não preciso.
Dá-me a tua mão, e faz tua voz ser ouvida pela sala. Ou não volte mais aqui.

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(a gente pode esquecer tudo isso e um dia prometo escrever uma coisa bonita)

domingo, 17 de outubro de 2010

Pra calar o grito

Preciso não dormir... o Chico fica repetindo naquela música. E essa insônia ainda acaba comigo.
Noites mal dormidas são os versos que não tomaram linha, intensidades que não foram vividas durante o dia (nem o outro, nem o outro, nem o outro...), o arrebatamento que não veio. O susto, o fôlego, o mergulho, a palavra. Susto que não levei, fôlego que não perdi, mergulho que não, palavra que não, que não, que não...
E como calar? Como parar? Como contentar? Contentar-me de contente. Posso?
Quanto mais tento dormir mais afundo no travesseiro, queimando no colchão, tentando não pensar no dia, esquecer da noite. Dormir, enfim. Pra calar o grito.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Como fazer uma dança




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PASSO CINCO



É isso. Tenho certeza de que a casa conspira contra mim. Quando não me encara, ficam os móveis soltando risinhos abafados. Ela sussurra teu nome repetidas vezes até que eu passo a acreditar que a voz vem da minha cabeça. Acho que ela te esconde em algum canto. Acho que te quis para que fosses só dela. Odeia-me essa casa. Quer expulsar-me daqui. Odeia-me porque me viu tão sólida ao teu lado. Mais sólida que ela, mulher feita de carne, ossos, sangue e homem, contra essa coisa de cal. Roubaram-te de mim, todos os malditos aposentos desse quadrado. Abro todos os móveis, no armário embaixo da cozinha, na estante da sala... não estás... Entre as roupas do guarda-roupa, debaixo da cama... nada. Dentro da TV, da geladeira, do microondas... Não te perderia por nada essa infame. Mas também eu sei me impor. Estaca na mão, derrubo todas as paredes, uma a uma, pedaço por pedaço, rodopiando pela sala, esfarelando os blocos que caem ao chão. Eu venço enfim, quando ouço um ruído bem acima da minha cabeça. Era no teto que ela te escondia e tu passavas as horas a observar cada passo meu. O teto rangendo é o pedido de clemência da casa, mas eu rio bem alto e continuo a bater a estaca com força. O teto começa a ceder e eu abro bem os braços num abraço todo teu. E o teto desaba sobre mim, esmagando meu corpo esticado no chão.


Foto de Salvador Dalí

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Como fazer uma dança

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PASSO QUATRO



Tua voz inunda o quarto. Sem mais, invades as paredes inflando as veias da sala. Os móveis páram a me observar. A casa toda respira num só ritmo: o de teus passos pelo tapete. Este se recolhe em recortes cada vez menores e afunda os espaços já marcados por teus pés. Agora eu vejo: a casa, sem que eu me apercebesse, sempre fora tua cúmplice. Conquistara-a, decerto, ao deslizar de leve as mãos por cada canto, remexendo seus hiatos, os dois se amando enquanto eu dormia. Agora, cada pedaço é branco, cada minuto desaba no vazio; um vazio de apertar o peito. A cadeira não te senta, a cama não te deita, a porta não mais te emoldura ao chegar; nada aqui te participa. Denunciamos, ela e eu, na cara insone, a tua ausência. Outro instante pendendo no azul oblíquo...



(...)

domingo, 10 de outubro de 2010

Como fazer uma dança



(...)


PASSO TRÊS



Passos na escada. Pode ser um vizinho, pode ser você, pode ser minha cabeça louca finalmente. O corpo estanque põe-se de pé, sem mexer um músculo, sem um único estalo, esperando sem nem precisar perguntar o que, mas marcando atento cada movimento do corpo que se aproxima, fixo em cada som. Os passos de um outro viram à esquerda, seguem pelo corredor, passam sem notar minha porta. O número continuou marcando a porta, ficou lá, olhando o estranho de costas, com os olhos bem abertos, a boca tremendo um pouco, esperando a hora que não vem... Ou vens?



(...)



Foto do filme A Liberdade é Azul

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Como fazer uma dança


(...)


PASSO DOIS



Vestes a roupa sem muito pesar, abotoa um a um os botões da camisa. E sem mais, vais abandonando o quarto. Olhar, nem de soslaio. Eu cravo as unhas no colchão, vou engolindo cada lágrima, me afogando até a porta ressoar fechando. Vou para a sala muito rápido buscar o que restou do teu cheiro. No oitavo andar quatro pés ensaiam um bolero. Passo a mão pelo rosto, enxugo o suor gelado. Sento-me no sofá, esfregando as mãos pelos joelhos, olhando para o relógio sem que ele responda uma letra. Minha cara tiquetaqueando pregada na parede. Eu vou dormir pelo cansaço.

(...)



Foto: O Abandono - Camille Claudel

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Começa assim...: Como fazer uma dança

Começa assim...: Como fazer uma dança: "(republicando) PASSO UM Põe a mão no meu ombro sem que eu possa ver-te ou tocar-te. Aproxima-te vagaroso e seguro. Trazendo nos olhos a..."

Como fazer uma dança




(republicando)


PASSO UM
Põe a mão no meu ombro sem que eu possa ver-te ou tocar-te. Aproxima-te vagaroso e seguro. Trazendo nos olhos aquele silêncio denso qual barulho do fundo do mar. Faz-me te olhar com cuidado e reverente e te querer de forma absurda. Abraça-me enfim e solta meu corpo despencando num abismo.

Vem passeando teu suspiro pela minha nuca que eu te mostro onde reside meu compasso, mas apenas se conheces minhas horas e com cuidado tratas o meu estar. Amor de becos e gosto de sangue na boca, arrasta-me num querer-te sem fim. Pesem-me os pés sem chão, as mãos arrancadas de qualquer pulso firme.
(...)



(foto do filme 2046)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

tempo, tempo...

acho que a vida anda passando a mão em mim
a vida anda passando a mão em mim
acho que a vida anda passando
a vida anda passando
acho que a vida anda
a vida anda em mim
acho que há vida em mim
a vida em mim anda passando
acho que a vida anda passando a mão
em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

do livro Pensamento do Chão, de Viviane Mosé

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Escrevo ainda? Sigo adiante.

Escrevo ainda como quem busca um quê. E de frases soltas é que se faz esse espaço. Frases que só encontraram sentido no exato instante em que tocaram o papel esperando a próxima... a próxima frase que traria o inegável sentido do que está dito como se, todo o tempo, confluíssemos para esse sentido. Como se eu já o soubesse e apenas desse volteios por entretenimento.

Aviso logo: não faço sentido e não vejo sentido no que faço. Espero sempre o abraço que aceite essa minha parte tão vaga, a mão que segure firme essa minha palma tão fluida, uma linha que termine essa frase.

Espero ainda. Espero. Respiro. Descompasso.