quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Começa assim, não acaba nunca.
Mas uma parte ficou terrivelmente cansada de brincar de escrever. A outra parte mudou-se para http://cartasdeana.wordpress.com/

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

André,

(Quando setembro acabar, será que leva meus morangos? Comprei caixas e mais caixas e agora não sei bem o que fazer.)

Fiquei me lembrando do tempo longe, quando era criança e gostava de tirar o relógio da parede da sala, quando ninguém mais via, e brincar de voltar os ponteiros. Daí observar como eles seguiam de novo e de novo, insistentes que eram em chegar ao ponto que tencionavam. Nunca conheci nada tão obstinado quanto um ponteiro de relógio, e era consternada, cheia de raiva e de admiração que constatava isso.

Não gostava de pensar no tempo, seu passeio pelos rosto, a marcas que deixa no corpo, a distância em que põe as lembranças, tudo ficando meio opaco. Furtava-me a esse embate, - achando tolamente que se tratava de um embate. A gente sabe – não sabe? – piora em setembros, quando, além das agonias do tempo, vem essa vontade de esmagar os morangos com as pontas das unhas só pra ter a fruta desmanchando. Lamber os dedos, estranhar o gosto e não saber ao certo o porquê do que acabara de fazer. Essa fome de salivas, resgates e esquecimentos.

Divido contigo o meu tempo não para te pedir substância, como antes, mas porque te vi vestido de cinza-tédio e com isso senti aumentar a minha inquietação.  Há pouco, venho tentando fazer as pazes com o tempo, resolver as birras de criança e, quem sabe então, aceitar melhor o risco dos saltos. Acho que tem mais cor assim, queria te dizer.

André, encara meu segredo que é de um absurdo sem fim, antes que eu o guarde de novo dentro de uma árvore. Dessa vez sou eu que te dou a mão. Estica a língua e come o morango, que o tempo é doce, embora rude. Não há que se esperar outro convite para o chá ou que outro coelho perdido venha nos resgatar, o ponteiro vai seguir mesmo enquanto a gente fixar o olhar. Deixa gotejar cansado. Eu tenho aceitado que o tempo passeie por mim, deixa ser também.

Ana.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Cartas de Ana


Aquele dia caía uma chuvinha bem fina. Salpicava o rosto só. Parecia que a gente transpirava, ainda mais com aquele calor abafado que fazia. A gente costumava achar que só aqui, só na nossa cidade miúda é que fazia um calor tanto assim antes de uma chuva. E a gente aceitava a chuva de bom grado. Bagunçava o cabelo, encharcava o sapato porque eu sempre pisava nas poças, mas a gente gostava. Achava que era o sopro necessário depois de todo o calor. Calor que só fazia aqui na nossa miudeza; certo. A gente costumava achar que muita coisa era só por aqui, que lá fora, na vastidão, as tristezas talvez fossem mais cinzas, os amores mais vermelhos, o calor mais amarelo ocre. Abafado, só aqui. A gente achava que a miudeza carecia de cor. (Claro que nesse achar se intercalavam os momentos da chuvinha fina, que deixava um sorriso envergado no lábio, como se segredo fosse). Aí a gente pensava que queria sair, queria desbravar, descobrir o grande pra ver se não sufocava, correr, ter mais pés, mais abraços, mais horas pra gastar de tanto gastar. Mas na chuvinha não. A gente ria tímido no começo, corria um pouco fingindo querer escapar da água. Aí eu pisava na poça, já disse. Você lembrava como eu sempre fazia isso e tentava argumentar que não era tão difícil assim evitar as poças. Mostrava como fazer. Eu falava algo sobre a atração dos meus pés pelas poças mais fundas, quase rindo, mas era grave. Daí eu fingia que entendia o que você explicava e concordava com os olhos apertados, mas sabia que ia continuar pisando onde meus pés quisessem e, afinal, já não importava, encharcada que estava. Enquanto a gente falava, ia se esquecendo (só que de propósito) de fugir da chuva. Em algum momento, concluía que de nada adiantaria correr, e andar na chuva se tornava um passeio leve, sempre já com cara de ontem, sem o peso do presente ou algum cheiro de futuro assombrando. Tornava-se um passeio vazio de quereres, exceto talvez os quereres trazidos pela água da chuva remolhando a boca. Era um passeio assim, de miudezas, sabe?
Por hoje é o que me vem. Por hoje, te desejo um pouco de ontem. Uma chuva fina (e que venha, por deus, que está tão abafado nessa nossa miudeza, não?).
Beijo meu.
Ana.

domingo, 4 de novembro de 2012

Tudo turbulindo


Não sei se faço certo. Os meus pés precisam de chão pra não ir turbilhonando meu mundo, girando tudo rápido demais, ficando na ponta levianamente, achando que são de correr, de dançar, de ir mais e mais longe. Eles vão e voltam do chão, vão brincando de abismo e linha reta pelo caminho.

Eu bem gostava da ideia de ser mulher de firmeza, sabe? Dessas que trazem terra atrás dos olhos, sangue por baixo das unhas. Cheiro de certeza. Dessas que falam miúdo, que pisam certo, que sabem o caminho, que decepam melancolias com peixeira afiada. Eu penso assim. Mas a vida quis me dar destino outro. Me jogou do muito frio pro muito quente, e eu fiquei sem saber de que extremo gosto mais. Encheu meus olhos de tamanho pra que eu pudesse enxergar os pequenos e os cantos. E havia sempre palavras, palavras e mais palavras; cantadas, faladas, escritas, tatuadas, boicotando as horas que não têm fim.  Fiquei cheia de opostos, cheia de porvires de ontem, de excessos, de escapes, de farpas, de suavidades e de indelicadezas.

Eu volto o disco na vitrola e até gosto do arranhado que faz na superfície. Vou. Volto. Arrasto mais um pouco. O que eu quero é ver a agulha se entortar.

Eu encaro o relógio desde que me sei e acho que é porque as horas são matérias minhas, as horas passeiam em mim também.

Eu corro o dedo desenhando e redesenhando o corpo dele porque aprendi que caminho também é fim, e assim penso que encontrei um jeito mais suave de seguir e caminhar.

Assim, enfim, eu vou. Com ele. Sem ele. Que na verdade é um pouco mim, um pouco mais que outro, um pouco menos que nada, um pouco do tanto que eu não sei onde escondo e nem por que.

Salto do trem antes que o destino final aconteça, só porque gosto do movimento do saltar e não posso evitar esse pulo antecipado, esse logo mais que insiste em atropelar meus agoras. Ou porque não quero mesmo chegar.

Ainda, eu não largo sua mão, porque tenho medo do vazio que dá entre os dedos. Escolho palavras repetidas e inventadas. Canto um instante que não passou.

Vejo que vou endurecendo, mas não quero ceder a esse estúpido amanhã que teima em vir cada vez mais bruto. Fico tecendo fugas. Eu vou secar o seu pranto, que é pra ver se sobra um pouquinho pra mim. Pra ver se assim eu me agarro ao que é desmanchar e desfazer.

Começa assim. Não acaba nunca. Impede a morte, mas quase sempre engasga.

Dá-me a tua mão, aceita o inexpressivo, abre os teus olhos para o segredo que te conto. Adivinha as horas. Trata para que tudo se ajeite no fim. Confunde as cores do pierrodellafrancesca. Entende que isso que escrevo não faz sentido algum quando fora dessas linhas entre.

Não há palavra que cale. Não há lugar. Não há orquestra.

Eu me afogo, eu adoro, e vou me danar nessa incompletude que resolvi chamar destino.


terça-feira, 17 de julho de 2012

Era ela.


(Aposto que era ela. A moça que espreitava da janela.)

Aposto que é lunar. Que tem quatro fases, mas que a gente só sabe disso quando apura o olhar. E quem não olha bem, não faz ideia e, assim, sem nem desconfiar, perde o melhor da festa. Aposto que, de tão distraída, ela é a mais atenta; e sabe dizer sem nem piscar quem é quem e como tudo se encontra ao redor. Mas não diz por que tem medo de se mostrar. Aposto que entende das cores, e conhece todas as nuances, mesmo quando estão todas misturadas.

Aposto que ela é a moça da palavra, da voz, da música invadindo a casa. Aposto que ela às vezes esconde o jogo e finge ser só mulher. E que quando você pensa nela, pensa logo em vida turbilhonando, pensa em movimento, em força e em danação também, porque ela é um e outro extremo.

Aposto que ela é de Leão e o ascendente eu não sei, por que entendo pouco mesmo de zodíaco. Aposto que gosta de tudo e de coisa nenhuma.  E que tem fama de debochada, se ri de tudo e de todos, mas tem um cadinho de medo de chorar. Aposto que se guarda e gosta de dizer que é moça de respeito e cuidado, mas sonha com abismos, velocidades e décimo andar. Aposto que ela quer a queda livre.

Aposto que ela chora e que quando você pensa que acabou, ela chora um pouco mais. E antes que você se angustie com tanto azul, eu digo que ela o faz porque é de mar, e assim ela transborda. Nem se dá conta, nem sabe ao certo dizer, mas transborda. E como mar, ela esconde um mundo sob a superfície que tanto pode ser calma, quanto bravia. Se faz de absoluta, mas vem cheia de caprichos. Se recolhe e se espalha. Te entrega a vida, mas leva um pedacinho seu que você esquecia ao lado, indiferente.

Aposto que as madeixas são longas, e que ela ri com o corpo todo, até com os cílios postiços que traz colados aos olhos. E que, quando ri, olha de soslaio para os lados, enquanto os lados todos, indisfarçadamente, olham pra ela. Aposto que ela deslumbra quem está perto e, flagrando desconcertados o deslumbre, alguns o fantasiam de reprovação; mas é puro deslumbre, é sim.

Aposto que ela dança, que mergulha a mão no fundo do chão à procura de substância, que traz o andar carregado de promessas. Que ela quer ser vista, mas mais que isso, ela quer ser imaginada. Aposto que procura remédios ou remendos para a alma; não só a dela, mas de outros também. Aposto que agora não é o bastante e que mesmo o futuro nunca vai ser, porque ela quer mais, e sempre mais, e mais um pouco ainda. E que ela me deixa sem fôlego, e te deixa sem fôlego, e deixa a senhorinha sentada ao canto sem fôlego, com tanto ser e querer.

Aposto que ela espreita agora.

domingo, 8 de julho de 2012

Diadorim é minha neblina



"Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim - de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me, a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei - na hora. Melhor alembro."
...
"O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente - "Diadorim, meu amor..." Como era que eu podia dizer aquilo?"
...
"E como é que o amor desponta?"
...
"Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe."
...
"E eu - como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Diadorim tomou conta de mim."
...
"E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei - daí então acreditei."
...
"Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim que não era de verdade. Não era?"
...
"Diadorim deixou de ser nome. Virou sentimento meu."
...
"Aquilo me transformava. Me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava."
...
"Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço e fatal, carecendo de querer, e é só um facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois."
...
"Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim."
...
"No fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijas, as muitas demais vezes, sempre."
...
"Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros."
...
"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."
...
"Amor é a gente querendo achar o que é da gente."
...

Trechos de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa (recitados por Maria Bethânia em "Bethânia e as palavras")



domingo, 27 de maio de 2012

Remoto controle



Eu ando pelo mundo prestando presto atenção em cores que eu não sei o nome.

Daí paraliso e estremeço quando um vermelho súbito toma de rompante o meu dia, mancha minha semana. Espirra na cara fazendo sujeira, gritando a ofensa que só um vermelho tão inesperado, mas tão anunciado, poderia trazer. Vou limpando com calma a bagunça feita pelo vermelho, aparando as arestas de uma dor que não é minha, nem sua.

Quem é ela? Quem é ela?
Ela é o vermelho na calçada. E eu vejo tudo enquadrado.

Vou pensando devagar que o borrão vermelho vai apagar, dando lugar aos poucos a um breve azul, e logo existirão cores outras. Daí, pum, um estampido, outro vermelho, mais uma mancha. Esse mais contido. Esse logo fica roxo e cinza. E a gente fica querendo ver um pouco mais de cores outra vez.

Esqueço.
Lembro.
Esqueço.
Lembro outra vez.

Considere a real dificuldade que tenho em lidar com a linearidade do tempo. Considere que há durezas que ninguém deveria aprender. Deixa eu te dizer: meu amor, eu acordei. E havia uma multidão ao lado, cada um olhando pra um lugar diferente do outro, cada um parecendo mais perdido, outros sem sequer perceber que estavam perdidos. Considere a minha vontade (que você já flagrou antes) de levantar sorrateira e sumir da cena. Considere a minha também real dificuldade em expor fragilidades. Entenda que há dias que parecem anos embotados de solidão.

As noites têm sido cheias demais, e cada vez que acordo parece que mais um ano se passou. Tome posse disso - eu te permito essa posse por hoje – e me deixe dormir até que eu encontre sentidos outros para o que, na verdade, não faz sentido algum. Aceito ajuda pra tecer um tapete novo que se finja chão para os pés. Essa noite, o que eu queria era te dizer do menino, mas não consigo. Talvez porque ele fosse tão duro, tão opaco, tão ele mesmo, tão cheio de histórias que eu não conhecia. Eu queria dizer que ele tinha cor, mas eu não sei. Queria dizer que ele tinha voz, mas eu não sei. Queria dizer que ele tinha vida, mas ela acaba e nem isso eu sei ainda.

Eu percebo que está tudo embolado por aqui, mas considere tudo, os dias que seguem, e, por favor, entenda que essa noite eu só preciso dormir sem sonhos. Também eu não gosto do que se lê aqui, mas escrevo só pra ver se cala.

Você sabia que a história acabava assim, não sabia? Só não queria dizer. Eu sabia também. Mas, pra não sair da rotina, eu preferia não saber.