segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Matizada em tons de tempestade e vastidão. Um som que morreu manchou de escarlate meus cabelos e machucou com o estalo minha boca violeta, fazendo escorrer meu sangue roxo. Foi uma gota que tingiu meus dedos, até então amarelo trigo, ao rolar de leve pelo meu braço alaranjado. Caiu no chão e, engolida pelo asfalto, fez a rua querer chuva que veio solícita. As gotas de chuva pairaram um instante ante meu rosto azul oblíquo e se jogaram logo em seguida, numa avalanche magenta. Desbotei-me. Sou cinza claro.

terça-feira, 23 de novembro de 2010





"Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que estou querendo dizer com isto. Confio na minha incompreensão que me deu vida liberta do entendimento, perdi amigos, não entendo a morte. O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas são e sentem? Vivo-as mas não tenho mais força. Não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Seria trair o é-se. Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu. Está fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silecioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade - o it."


Trecho do livro Água Viva, Clarice Lispector
Foto: Clarice

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e começa assim:


sábado, 13 de novembro de 2010

Deixa Maria

Maria queria escrever uma estória doce, daquelas que enche de vida os pulmões de quem lê. Mas não encontra esse possível que em algum lugar deve existir.

Maria queria sentir o corpo inteiro pulsando de um sangue bem quente e vermelho de novo. Maria queria pular do ponto mais alto, sentindo as farpas de si soltando-se no ar. Queria sentir que o impossível estava ao alcance de suas mãos, que cada novo hoje, pudesse vir tão cheio de um mesmo que a renovasse sempre. Maria queria chorar bem alto quando o desepero viesse e queria rir até doer o peito. Abrir a boca debaxo d'água e engolir o mar inteiro. Acordar arrancando os cabelos de excitação. Sentir o gosto de sal. Queimar o medo de perder, o medo de ter, o medo de quem tem que partir, o medo de quem só pode ficar.
Maria queria sentir raiva, pena, desprezo, candura, amor quem sabe. Maria queria sentir qualquer coisa. Maria só queria a certeza de que ainda sente. Trazer a cabeça cheia de qualquer coisa, qualquer coisa.
Já que não havia raiva, nem tampouco amor, então não havia pecado e não havia perdão. Ficava um nada latejando. Não, o nada não fica nem latejando. O nada é só essa ausência. Até dela mesma. Que não se sabia.
Maria acreditava que não estava ali e forçava-se a acreditar que existia em outro lugar. Era só estender a mão e encostar.
Maria suspirava. Enchia o peito de ar e depois soltava. Esperava um vento súbito que lhe tirasse do chão. Ela que estava cada vez mais fincada na terra. Esperava que pudesse dormir e, ao acordar, alguma coisa fizesse sentido, qualquer coisa.
Ele dizia que, todos os dias ao acordar, repetia para si mesmo: "que seja doce", sete vezes seguidas. Maria já se cansava. Esta noite dormiria depois de muito tentar e, ao acordar, repetiria sete vezes seguidas: "que tenha gosto, que tenha gosto, que tenha gosto..."