quinta-feira, 31 de março de 2011

Corra Lola



Corra Lola, corra. Vê se alcança aquela pontinha do céu que ontem você viu. Vê se consegue provar ainda aquele gostinho do paraíso. Eu juro Lola, tastes like heaven. E vicia. Deixa a boca cheia de um gosto doce que eu não sei bem dizer com o que parece.  (Sabe quando você prova só um pedacinho da melhor sobremesa? Fica aquela vontade incontrolável de mais um pouco. Sabe aquele beijo que, depois de muito ensaio, só vem no fim do dia?)
Um gosto que parece um pouco com o tempo, com ontem, com anos atrás, com logo mais, mês que vem, eu acho. Gosto que me lembra vento, que passa de leve pelo rosto antes de chegar à boca. Gosto que parece pele tatuada cheia de frases pelo corpo. Parece sangue, Lola. Parece música, alto e vibrante. É gosto de uma língua nova, que eu ainda não conheço e fico ouvindo extasiada. Tem gosto de muitas folhas espalhadas pelo chão. De mãos que nervosas cortam retalhos que não foram ou ágeis desenham os contornos de um corpo. Tem gosto de nuvem ou de algodão doce (que em minha opinião desde criança, sãos gostos iguais). Gosto de terra úmida tão pisada e repisada.
Não fica aí parada olhando para o teto. Eu juro, Lola, tem gosto de vida. Não fica aí parada olhando pela janela, não fica aí parada só pensando em encostar-se ao ombro dela. Não fica parada olhando curiosa e descrente a cara de quem já provou. Não faz esse jeito blasé de quem não viu é nada. Estica um pouco mais a língua. Experimenta dobrar-se um pouco mais. Você não é feita só de sorte e acasos Lola, mas também de ousadia, de não saber, de arremessos e saltos improváveis, de pedaços e de inteiros.
Vem Lola, me dá a mão e tenta ver um pouquinho desse sonho, que em algum lugar dentro de mim eu guardei tão escondido que não consigo achar. Procura Lola, mas se encontrar não me conta onde está, porque a graça também é procurar e ficar tonta de alegria ao encontrar outra vez.

domingo, 20 de março de 2011

"O mais profundo é a pele"



Sou tão colorida e caleidoscópica quanto cinza e opaca. Mantenho os pés bem firmes no chão enquanto quanto flutuo por aí. Tenho tantas lágrimas presas quanto risos soltos, ou o contrário, quem sabe: tantos risos abafados quanto lágrimas espalhadas por aí. Tantas estórias quanto silêncios afogados no travesseiro. Sou tanta entrega quanto desconfiança. Sou dura como uma folha de papel, e me deixo escrever e rabiscar na esperança de que tantas linhas acabem por encontrar um rumo. Eu resisto a avalanches, mas soçobro com uma só gota.
Edifico mundos, mas sou como areia. E mesmo para mim, é muito difícil saber quando e onde estou. Eu me perco constantemente.
Eu passeio entre extremos, amando as intensidades, mas morrendo de medo de ser carregada num turbilhão. Assim, sou pura mansidão, mas meu equilíbrio só se mantém por uma quase lunática volúpia. Amo com todas as garras escondidas em meus cabelos. E odeio apenas no ontem, nunca no presente.
Sou raivosa, apaixonada, chorona, fria, calma, determinada e ponderada. Entendo pouquíssimas coisas. Até mesmo, apesar do que digo, eu não entendo os opostos, mas não acho que se atraiam. Acredito que as aparências não enganam, nós é que as vemos da forma errada. Tudo que precisa ser visto, dito e mostrado, está ali, o tempo todo.
Peço perdão, mas nunca me arrependo. Tenho tanto medo de me ver exposta, que saio me gritando por aí, e mostro tudo aquilo que queria esconder. Eu odeio despedidas e dificilmente aceito derrotas. Mas sei que é o fim, e sem mais o que dizer, retiro-me do recinto.

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Imagem: Vik Muniz

terça-feira, 1 de março de 2011

Era hora


Já era hora meu amor. Já era hora e ele não via, Maria também não via.
Era hora de separarem-se os corpos, virar os olhos para lados opostos, e andar, andar sempre mais um pouco. Hora de acordar do sonho.
Maria leva um susto quando olha o relógio e vê quantas horas se passaram desde então.
Agora, já de pé,o jeito é tentar ser firme. De vez em quando, surpreender-se ainda com uma lágrima que cai sorrateira, ligeira. Ela queria cair e Maria não deixava, Maria não deixava e ela voltava pra garganta, até que Maria a jurasse esquecida, engolida; aí ela cai.
Repetir até começar a (quase) acreditar que a felicidade pode ser reencontrada em outra noite. Repetir até começar a sentir-se (quase) feliz. Repetir que é possível, porque é preciso seguir.
É hora agora de seguir; “navegar é preciso, viver não é preciso”.  Viver é aquela coisa doida, aquele turbilhão, aquela intensidade latejante, dormir um pouso mais pra escapar da sanidade. Mas pra quem deve seguir navegando não se pode mesmo esperar muito mais que só um quase, certo?
Nem sempre é assim. Há dias em que ela (quase) acredita de verdade, até se ver surpreendida por aquela lágrima que havia esquecido de cair (ou será que Maria ainda produzia lágrimas novas?). Maria está pessimista hoje, ela sabe.
Deixe estar.

http://www.youtube.com/watch?v=US54UI_UOUQ&feature=related



Figura: La Toilette - Toulouse Lautrec