terça-feira, 17 de julho de 2012

Era ela.


(Aposto que era ela. A moça que espreitava da janela.)

Aposto que é lunar. Que tem quatro fases, mas que a gente só sabe disso quando apura o olhar. E quem não olha bem, não faz ideia e, assim, sem nem desconfiar, perde o melhor da festa. Aposto que, de tão distraída, ela é a mais atenta; e sabe dizer sem nem piscar quem é quem e como tudo se encontra ao redor. Mas não diz por que tem medo de se mostrar. Aposto que entende das cores, e conhece todas as nuances, mesmo quando estão todas misturadas.

Aposto que ela é a moça da palavra, da voz, da música invadindo a casa. Aposto que ela às vezes esconde o jogo e finge ser só mulher. E que quando você pensa nela, pensa logo em vida turbilhonando, pensa em movimento, em força e em danação também, porque ela é um e outro extremo.

Aposto que ela é de Leão e o ascendente eu não sei, por que entendo pouco mesmo de zodíaco. Aposto que gosta de tudo e de coisa nenhuma.  E que tem fama de debochada, se ri de tudo e de todos, mas tem um cadinho de medo de chorar. Aposto que se guarda e gosta de dizer que é moça de respeito e cuidado, mas sonha com abismos, velocidades e décimo andar. Aposto que ela quer a queda livre.

Aposto que ela chora e que quando você pensa que acabou, ela chora um pouco mais. E antes que você se angustie com tanto azul, eu digo que ela o faz porque é de mar, e assim ela transborda. Nem se dá conta, nem sabe ao certo dizer, mas transborda. E como mar, ela esconde um mundo sob a superfície que tanto pode ser calma, quanto bravia. Se faz de absoluta, mas vem cheia de caprichos. Se recolhe e se espalha. Te entrega a vida, mas leva um pedacinho seu que você esquecia ao lado, indiferente.

Aposto que as madeixas são longas, e que ela ri com o corpo todo, até com os cílios postiços que traz colados aos olhos. E que, quando ri, olha de soslaio para os lados, enquanto os lados todos, indisfarçadamente, olham pra ela. Aposto que ela deslumbra quem está perto e, flagrando desconcertados o deslumbre, alguns o fantasiam de reprovação; mas é puro deslumbre, é sim.

Aposto que ela dança, que mergulha a mão no fundo do chão à procura de substância, que traz o andar carregado de promessas. Que ela quer ser vista, mas mais que isso, ela quer ser imaginada. Aposto que procura remédios ou remendos para a alma; não só a dela, mas de outros também. Aposto que agora não é o bastante e que mesmo o futuro nunca vai ser, porque ela quer mais, e sempre mais, e mais um pouco ainda. E que ela me deixa sem fôlego, e te deixa sem fôlego, e deixa a senhorinha sentada ao canto sem fôlego, com tanto ser e querer.

Aposto que ela espreita agora.

domingo, 8 de julho de 2012

Diadorim é minha neblina



"Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim - de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me, a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei - na hora. Melhor alembro."
...
"O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente - "Diadorim, meu amor..." Como era que eu podia dizer aquilo?"
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"E como é que o amor desponta?"
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"Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe."
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"E eu - como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Diadorim tomou conta de mim."
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"E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei - daí então acreditei."
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"Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim que não era de verdade. Não era?"
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"Diadorim deixou de ser nome. Virou sentimento meu."
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"Aquilo me transformava. Me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava."
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"Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço e fatal, carecendo de querer, e é só um facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois."
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"Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim."
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"No fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijas, as muitas demais vezes, sempre."
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"Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros."
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"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."
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"Amor é a gente querendo achar o que é da gente."
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Trechos de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa (recitados por Maria Bethânia em "Bethânia e as palavras")