segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Cartas de Ana


Aquele dia caía uma chuvinha bem fina. Salpicava o rosto só. Parecia que a gente transpirava, ainda mais com aquele calor abafado que fazia. A gente costumava achar que só aqui, só na nossa cidade miúda é que fazia um calor tanto assim antes de uma chuva. E a gente aceitava a chuva de bom grado. Bagunçava o cabelo, encharcava o sapato porque eu sempre pisava nas poças, mas a gente gostava. Achava que era o sopro necessário depois de todo o calor. Calor que só fazia aqui na nossa miudeza; certo. A gente costumava achar que muita coisa era só por aqui, que lá fora, na vastidão, as tristezas talvez fossem mais cinzas, os amores mais vermelhos, o calor mais amarelo ocre. Abafado, só aqui. A gente achava que a miudeza carecia de cor. (Claro que nesse achar se intercalavam os momentos da chuvinha fina, que deixava um sorriso envergado no lábio, como se segredo fosse). Aí a gente pensava que queria sair, queria desbravar, descobrir o grande pra ver se não sufocava, correr, ter mais pés, mais abraços, mais horas pra gastar de tanto gastar. Mas na chuvinha não. A gente ria tímido no começo, corria um pouco fingindo querer escapar da água. Aí eu pisava na poça, já disse. Você lembrava como eu sempre fazia isso e tentava argumentar que não era tão difícil assim evitar as poças. Mostrava como fazer. Eu falava algo sobre a atração dos meus pés pelas poças mais fundas, quase rindo, mas era grave. Daí eu fingia que entendia o que você explicava e concordava com os olhos apertados, mas sabia que ia continuar pisando onde meus pés quisessem e, afinal, já não importava, encharcada que estava. Enquanto a gente falava, ia se esquecendo (só que de propósito) de fugir da chuva. Em algum momento, concluía que de nada adiantaria correr, e andar na chuva se tornava um passeio leve, sempre já com cara de ontem, sem o peso do presente ou algum cheiro de futuro assombrando. Tornava-se um passeio vazio de quereres, exceto talvez os quereres trazidos pela água da chuva remolhando a boca. Era um passeio assim, de miudezas, sabe?
Por hoje é o que me vem. Por hoje, te desejo um pouco de ontem. Uma chuva fina (e que venha, por deus, que está tão abafado nessa nossa miudeza, não?).
Beijo meu.
Ana.