terça-feira, 5 de abril de 2011

As minhas meninas

(Eu sei Maria, que roubo o título do seu texto. Mas o uso é diverso. Eu constantemente surrupio palavras quando me despertam sentidos.)
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“Nada é muito terrível...”
As minhas meninas são outras. Aliás, é exatamente isso: as minhas meninas são outras, sempre outras, nunca nós, nunca aqui, tão distantes estão daquilo que podemos imaginar como suportável numa vida, ainda que longa. As minhas meninas são jovens, Maria, e dá pra ver tanta juventude saltando no brilho dos olhos delas. As minhas meninas às vezes riem solto e cheias de verdade, quase não parecem mais tão outras. As minhas meninas às vezes se distraem e choram, pedem colo, pedem desculpa, e se traem... se deixam descobrir de uma fragilidade inquietante, porque nós só esperamos – ou só suportamos – ver nelas dureza, um olhar raso, um riso banal.
A gente ouve falar nas meninas, mas dificilmente ouvimos as meninas falarem. Já parou para ouvir uma das minhas meninas falar? Ela não te conta das dores, ela te fala de sonhos, de cores, de belezas, as mesmas que você falava quando menina. Quase sempre é isso. E aí também minhas meninas não são tão outras. E eu rio quase com doçura ouvindo suas histórias.
Elas estão tão perto, Maria. As minhas meninas moram logo ali, só que do outro lado da ponte, onde “o mundo é diferente” como alguém já tentou alertar. É estranho, aqui tudo é perto e o outro lado parece conhecido, mas a gente se espanta quando olha só um pouquinho mais de perto.
Hoje uma das minhas meninas chegou com o olho esquerdo inchado, e quando eu a vi ela estava rindo e me perguntou se eu tinha guardado o desenho que ela começou na semana anterior. Guardei sim, claro. Ela quer terminar depois. Fica ouvindo música e batendo papo com outras pessoas, conta tudo como se fosse tão leve. O olho? Ah sim, a minha menina tem quinze anos e há uns cinco dias atrás apanhou de um policial na rua. Eu juro, quando ela conta nem parece tão pesado. Quando elas contam das outras meninas que também já apanharam tantas e tantas vezes, do policial, do namorado, do pai, da mãe, do padrasto... quando elas contam de como já foram de tantas formas violentadas, seja um estupro por um parente ou alguma senhorinha que se dá ao direito de chamá-la de vagabunda (sim, isso também é uma violência, senhorinha!), não parece, naquele instante, que na minha cabeça e no meu corpo de menina de quinze anos aquilo seria tão devastador. Quando uma menina conta que foi estuprada por três caras aos doze anos, ou molestada pelo pai aos quatro, ou espancada pela mãe desde sempre, etc, etc, etc... não parece tão incrível que a vida possa seguir, que aquelas risadas consigam sair tão verdadeiras, tão cheias de força, que o peito se encha de ar ainda, que ainda brilhem os olhos. “O pulso ainda pulsa e o corpo ainda é pouco”.
Hoje uma das minhas meninas me deu vontade de chorar... eu que sou tão dura pra isso... e só agora, já em casa, longe outra vez, eu consigo assimilar. Vontade de chorar de raiva, de dor, de compaixão, por me sentir tão pequena. Hoje essa menina me deu vontade de largar tudo, parar o mundo e descer, ao mesmo tempo em que quis gritar pra todo mundo ouvir que as minhas meninas existem, e de cuspir na cara do policial e da senhorinha.
Mas nada disso vai acontecer. Amanhã tem outra menina, e depois outra. E elas são tantas, e a gente sabe tão pouco, e o tempo vai tão rápido. As minhas meninas seguem, e você bem sabe, elas nem são minhas, é só essa vontade que me deu hoje de sair colocando curativo em todas as feridas delas e de poder dizer com voz calma e segura: já passou, vai sarar.
“Nada é muito terrível. Só viver, não é?”