domingo, 31 de outubro de 2010

Muß es sein?



"Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a sempre parecer um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.


Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Poder viver apenas uma vida é como não viver nunca".*




Es muß sein! Es muß sein! (Tem que ser assim!). O último movimento do último quarteto de Beethoven.
Muß es sein? (Tem que ser assim?)


Quem diz?


*(trecho do livro A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Entre ideias, farrapos, língua e sangue

Existe uma palavra que vem antes da palavra. Um tapa que vem antes de qualquer gesto. Uma dor que chega antes que qualquer explicação lhe possa ser dada.
Existe um já que é antes desse segundo de agora. O instante-já de Clarice.
Deixe-me usar Clarice, sim?
Dá-me tua mão.
Antes que eu sufoque, diga qualquer coisa.
Dá-me tua mão. Prova que estou cega e que alguma coerência, algum sentido, existia dentro daquele turbilhão. Prova que eu estou errada e mostra alguma verdade em meio a todas aquelas frases soltas de outrora.
Dá-me tua mão e mostra que o gosto de baunilha não precisa ficar assim tão amargo.
Prova-me com a língua e com o sangue. Não com farrapos e ideias.
Dá-me tua mão e vê se o calor da pele da minha mão consegue te mostrar que ainda há vida em mim. Daí, mostra-me também. Mostra-me a vida que talvez ainda circule na minha mão. Mostra-me porque eu já não a vejo.
Acalma esses dias de pressa.
Dá-me a tua mão, teu golpe de graça, neutro artesanato.
Ou se tudo que tem são as ideias e os farrapos, guarda-os contigo. Deles eu não preciso.
Dá-me a tua mão, e faz tua voz ser ouvida pela sala. Ou não volte mais aqui.

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(a gente pode esquecer tudo isso e um dia prometo escrever uma coisa bonita)

domingo, 17 de outubro de 2010

Pra calar o grito

Preciso não dormir... o Chico fica repetindo naquela música. E essa insônia ainda acaba comigo.
Noites mal dormidas são os versos que não tomaram linha, intensidades que não foram vividas durante o dia (nem o outro, nem o outro, nem o outro...), o arrebatamento que não veio. O susto, o fôlego, o mergulho, a palavra. Susto que não levei, fôlego que não perdi, mergulho que não, palavra que não, que não, que não...
E como calar? Como parar? Como contentar? Contentar-me de contente. Posso?
Quanto mais tento dormir mais afundo no travesseiro, queimando no colchão, tentando não pensar no dia, esquecer da noite. Dormir, enfim. Pra calar o grito.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Como fazer uma dança




(...)


PASSO CINCO



É isso. Tenho certeza de que a casa conspira contra mim. Quando não me encara, ficam os móveis soltando risinhos abafados. Ela sussurra teu nome repetidas vezes até que eu passo a acreditar que a voz vem da minha cabeça. Acho que ela te esconde em algum canto. Acho que te quis para que fosses só dela. Odeia-me essa casa. Quer expulsar-me daqui. Odeia-me porque me viu tão sólida ao teu lado. Mais sólida que ela, mulher feita de carne, ossos, sangue e homem, contra essa coisa de cal. Roubaram-te de mim, todos os malditos aposentos desse quadrado. Abro todos os móveis, no armário embaixo da cozinha, na estante da sala... não estás... Entre as roupas do guarda-roupa, debaixo da cama... nada. Dentro da TV, da geladeira, do microondas... Não te perderia por nada essa infame. Mas também eu sei me impor. Estaca na mão, derrubo todas as paredes, uma a uma, pedaço por pedaço, rodopiando pela sala, esfarelando os blocos que caem ao chão. Eu venço enfim, quando ouço um ruído bem acima da minha cabeça. Era no teto que ela te escondia e tu passavas as horas a observar cada passo meu. O teto rangendo é o pedido de clemência da casa, mas eu rio bem alto e continuo a bater a estaca com força. O teto começa a ceder e eu abro bem os braços num abraço todo teu. E o teto desaba sobre mim, esmagando meu corpo esticado no chão.


Foto de Salvador Dalí

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Como fazer uma dança

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PASSO QUATRO



Tua voz inunda o quarto. Sem mais, invades as paredes inflando as veias da sala. Os móveis páram a me observar. A casa toda respira num só ritmo: o de teus passos pelo tapete. Este se recolhe em recortes cada vez menores e afunda os espaços já marcados por teus pés. Agora eu vejo: a casa, sem que eu me apercebesse, sempre fora tua cúmplice. Conquistara-a, decerto, ao deslizar de leve as mãos por cada canto, remexendo seus hiatos, os dois se amando enquanto eu dormia. Agora, cada pedaço é branco, cada minuto desaba no vazio; um vazio de apertar o peito. A cadeira não te senta, a cama não te deita, a porta não mais te emoldura ao chegar; nada aqui te participa. Denunciamos, ela e eu, na cara insone, a tua ausência. Outro instante pendendo no azul oblíquo...



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domingo, 10 de outubro de 2010

Como fazer uma dança



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PASSO TRÊS



Passos na escada. Pode ser um vizinho, pode ser você, pode ser minha cabeça louca finalmente. O corpo estanque põe-se de pé, sem mexer um músculo, sem um único estalo, esperando sem nem precisar perguntar o que, mas marcando atento cada movimento do corpo que se aproxima, fixo em cada som. Os passos de um outro viram à esquerda, seguem pelo corredor, passam sem notar minha porta. O número continuou marcando a porta, ficou lá, olhando o estranho de costas, com os olhos bem abertos, a boca tremendo um pouco, esperando a hora que não vem... Ou vens?



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Foto do filme A Liberdade é Azul

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Como fazer uma dança


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PASSO DOIS



Vestes a roupa sem muito pesar, abotoa um a um os botões da camisa. E sem mais, vais abandonando o quarto. Olhar, nem de soslaio. Eu cravo as unhas no colchão, vou engolindo cada lágrima, me afogando até a porta ressoar fechando. Vou para a sala muito rápido buscar o que restou do teu cheiro. No oitavo andar quatro pés ensaiam um bolero. Passo a mão pelo rosto, enxugo o suor gelado. Sento-me no sofá, esfregando as mãos pelos joelhos, olhando para o relógio sem que ele responda uma letra. Minha cara tiquetaqueando pregada na parede. Eu vou dormir pelo cansaço.

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Foto: O Abandono - Camille Claudel

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Começa assim...: Como fazer uma dança

Começa assim...: Como fazer uma dança: "(republicando) PASSO UM Põe a mão no meu ombro sem que eu possa ver-te ou tocar-te. Aproxima-te vagaroso e seguro. Trazendo nos olhos a..."

Como fazer uma dança




(republicando)


PASSO UM
Põe a mão no meu ombro sem que eu possa ver-te ou tocar-te. Aproxima-te vagaroso e seguro. Trazendo nos olhos aquele silêncio denso qual barulho do fundo do mar. Faz-me te olhar com cuidado e reverente e te querer de forma absurda. Abraça-me enfim e solta meu corpo despencando num abismo.

Vem passeando teu suspiro pela minha nuca que eu te mostro onde reside meu compasso, mas apenas se conheces minhas horas e com cuidado tratas o meu estar. Amor de becos e gosto de sangue na boca, arrasta-me num querer-te sem fim. Pesem-me os pés sem chão, as mãos arrancadas de qualquer pulso firme.
(...)



(foto do filme 2046)