sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Caso Pluvioso

A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.

A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.

Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!

ela chovia em mim em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.

Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!

Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia – em vão – pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira maria, chuvadonha,
Chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Pára! E ela, chovendo,
poços d’água gelado ia tecendo.

Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,

e era o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvisco.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando

contra essa chuva, estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,

e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,

e maria chovendo. Eis que a essa altura,
Delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, maria! – e ela parou.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Je veux te dire que...

Eles se encontraram depois de um tempo de desencontro. Duas folhas soltas. É como se tempo não houvesse. Depois que Alice pulou naquele buraco e tomou o comprimido, não sabe mais o tamanho real; seria o mundo de antes a verdade, ou pura ficção? De repente, faz mais sentido um coelho atrasado, um chapeleiro aloprado, uma rainha que corta cabeças. Copas fazendo ronda em volta do relógio que bate a hora do chá. Sempre um pouco atrasado.  De repente, queremos apenas nos sentar para esse chá de faz de conta. Um pouco de leite? Me passa o açúcar? Bom? Sim, muito bom. E isso é o real. Esse estado breve de imaginação, de semi sonho, rodeado de tantos sons que vêm dos outros, vêm das ruas. O enraçado é que o fato de virem tantos sons de fora, faz o fora parecer ainda mais irreal, mais fora; ele é só o cenário. Aqui dentro, o chá. Sempre um pouco adiantado. Antes ainda de outra vida começar. Não era ainda para estarmos aqui? Corremos? Perdemos? Caímos quantos? A gente não sabe se corre ou se vai muito devagar. A gente vai meio cego em meio à cidade tomada. A gente vai de mãos dadas, a gente se perde, se acha, se esbarra, se segura em outro ponto. De repente, um que parece tão seguro. De repente, ela escorrega outra vez. De repente, pensa que acordou do sonho, como se dessem um beliscão. Daí, tem dúvida outras vez. Acordou? Ou apenas começou a dormir? Qual entre esses estados de imersão é o sonho? Existe algo que não seja? Ou é tudo um sonho, dentro de outro sonho, dentro de outro sonho, dentro de outro... Importa? Importo eu? Alguém? Neste instante, ela pensa que não dá a mínima. Ela quer viver nesse estado de sonho, sem pensar se é real, se vai acordar cedo ou tarde, chegar adiantada ou atrasada para o chá. Caso em algum momento, isso deixe de parecer real, ela entra em outro sonho, pede outro chá. Mais açúcar?




(Puis ce silence qui me fait froid dans tout le coeur)