domingo, 4 de dezembro de 2011

Pour en finir avec le jugement de dieu

A QUESTÃO QUE SE COLOCA...
O que é grave
É sabermos
que atrás da ordem deste mundo
existe uma outra
Que outra?
Não o sabemos.
O número e a ordem de suposições possíveis
neste campo
é precisamente
o infinito!
E o que é o infinito?
Não o sabemos com certeza.
É uma palavra que usamos
para designar
abertura
da nossa consciência diante da possibilidade
desmedida,
inesgotável e desmedida.
E o que é a consciência?
Não o sabemos com certeza.
É o nada.
Um nada
que usamos
para designar
quando não sabemos alguma coisa
e de que forma
não o sabemos
e então
dizemos
consciência,
do lado da consciência
quando há cem mil outros lados.
E então?
Parece que a consciência
está ligada
em nós
ao desejo sexual
e à fome.
Mas poderia
igualmente
não estar ligada
a eles.
Dizem,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver:
e imediatamente
junto com o apetite de viver
o apetite da comida
imediatamente nos vem à mente;
como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e que tem fome. Pois isso também
existe:
os que tem fome
sem apetite;
e então?
Então
o espaço do possível
foi-me apresentado
um dia
como um grande peido
que eu tivesse soltado;
mas nem o espaço
nem a possibilidade
eu sabia exatamente o que fossem,
nem sentia necessidade de pensar nisso,
eram palavras
inventadas para definir coisas
que existiam
ou não existiam
diante da
premente urgência
de uma necessidade:
suprimir a idéia,
a idéia e seu mito
e no seu lugar instaurar
a manifestação tonante
dessa necessidade explosiva:
dilatar o corpo da minha noite interior,
do nada interior
do meu eu
que é noite,
nada,
irreflexão,
mas que é explosiva afirmação
de que há
alguma coisa
para dar lugar:
meu corpo.
Mas como,
reduzir meu corpo a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
que se forma em mim?
Não sei
mas
sei que
o espaço,
o tempo,
a dimensão,
o devir,
o futuro,
o destino,
o ser,
o não-ser,
o eu,
o não-eu
nada são para mim;
mas há uma coisa
que é algo,
uma só coisa
que é algo
e que sinto
por ela querer
SAIR:
a presença
da minha dor
do corpo,
a presença
ameaçadora
infatigável
do meu corpo;
e ainda que me pressionem com perguntas
e por mais que eu me esquive a elas
há um ponto
em que me vejo forçado
a dizer não,
   NÃO
à negação;
e chego a esse ponto quando me pressionam,
e me apertam
e me manipulam
até sair de mim
o alimento,
meu alimento
e seu leite,
e então o que fica?
Fico eu sufocado;
e não sei que ação é essa
mas ao me pressionarem com perguntas
até a ausência
e a anulação
da pergunta
eles me pressionam
até sufocarem em mim
a idéia de um corpo
e de ser um corpo,
e foi então que senti o obsceno
e que
soltei um peido
de saturação
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.
É que me pressionavam
ao meu corpo
e contra meu corpo
e foi então
que eu fiz tudo explodir
porque no meu corpo
não se toca nunca


*Trecho da transmissão radiofônica Para acabar com o julgamento de Deus, Antonin Artaud

sábado, 15 de outubro de 2011

O Buraco do espelho

Letra de Arnaldo Antunes



o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some
a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve
já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora




domingo, 28 de agosto de 2011



"Dá-me a tua mão: vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é a linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio".

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Engraçado... sempre escutei o clichê de que quem lê viaja. Eu não sabia que quem viaja volta um pouco pra casa. É como se cada pedacinho do que se vê fosse procurando um lugar familiar pra ocupar na sua memória. A gente pode ficar até meio confuso, sem saber ao certo se está mesmo só conhecendo um monte de coisas novas, chega a parecer que se volta em várias páginas e se continua a escrever, com sentidos novos, é certo. É um pouco como se a gente tivesse encontrado mais um pedacinho da história, um que a gente nem sabia que faltava...
A foto é do Musée Rodin, que conheci agora em agosto. E o texto é de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, que li há algum tempo já. O texto encheu a imagem de sentido no instante mesmo em que a vi, e a imagem agora traz mais cor ao texto. Pra mim, eles agora andam juntos... E tanto mais...

terça-feira, 19 de julho de 2011

Tempo da delicadeza



Ando leve. Eu já não conhecia há algum tempo a doçura de ser leve. Eu já acreditava que a gente só achava que a leveza podia existir. Eu tinha me acostumado a pedir sempre mais, a tentar estancar o sangue, a buscar fôlego em desespero. Eu tinha me acostumado a esse turbilhão. Eu tinha me acostumado a chorar só pra desafogar um pouco o peito. Eu tinha me acostumado tanto que, ao sentir roçar essa leveza, cheguei a pensar que fosse menos, que fosse falta. É não... é só assim mesmo.
Eu me lembro daquela moça pra quem alguém falava repetidamente que daria tudo pra não ver cansada, pra não ver calada, pra não ver chateada.... Ela parece longe e tão aqui, tudo ao mesmo tempo.
Será pecado ser leve e querer continuar sendo indefinidamente??? Será muito egoísta gostar desse silêncio que não faz questão nenhuma de se gritar? Será que isso é a loucura e antes eu era lúcida? Ou será o
contrário? Se só agora eu voltei a dormir e sonhar de noite, e acordar curiosa tentando lembrar do sonho, será estranho? Se eu já não me afogo...
Claro que vez ou outra vem um certo medo, uma sensação de que tal calma não vai durar, mas... será errado se eu disser que eu não me importo? Só por enquanto, só por hoje, será errado se eu não me importar?


Imagem: Fugue, de Andrzej Malinowski

terça-feira, 10 de maio de 2011

45 minutos

(Eu tenho uma amiga que sempre diz que acredita que existem pessoas iguais umas às outras, mas que essas pessoas iguais habitam universos paralelos que não podem nunca se encontrar. Se algum dia duas delas se encontrarem... sei lá... acho que tem um colapso mundial. Não estou muito certa do que acontece. Mas lembrei disso agora)
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Será essa a vida? A derradeira, única, definitiva?
Feche os olhos. Devagar você vai sentir a máquina deixar o chão. E por mais que force os pés no piso, você não está em terra firme: você está voltando para casa. E esta é a vida. A sua. Devagar, conte... 10, 9, 8... e se o relógio girasse ao contrário? E o sentido não fosse horário.
Você está num quarto de hospital sem conseguir abrir os olhos. Ouve várias pessoas indiferentes conversando ao redor. Você é a paciente do 206. Você sabe que está desacordada, mas percebe todos os sentidos (aqui, eles não são horários). E você está confusa, não estava ainda agora num avião voltando para casa? Ainda sem abrir os olhos, você sabe que a enfermeira que lhe prepara a medicação é incrivelmente parecida com você. Imagina que ela logo vai deixar o plantão, soltar os cabelos e se preparar para uma noitada com os amigos. Você queria abrir os olhos, tirar esse tubo da seca boca e dizer: “Ei, estou aqui, estou viva, estou consciente, não me deixem ainda, me leve com vocês...” Mas eles já saem. Continue contando... 7, 6, 5...
Acabou de mergulhar na piscina azul. Nesse momento, em volta, as pessoas estão conversando alto sobre tudo e coisa nenhuma. Bem agora você só sente a água em volta de todo seu corpo que, só assim, começa a parecer sólido, uma forma com contornos mais ou menos definidos. Antes se sentia fluida como se não pudesse caber. Você adora sentir a água entre os dedos, separando os fios dos cabelos. Mergulha um pouco mais fundo e pensa em abrir os olhos e soltar a respiração devagar... aí você conta... 4, 3...
E continua dançando. Tem tanta gente em volta e as luzes piscam tanto que você não consegue ver bem o rosto de ninguém. É tudo um borrão tão mal definido, que não faz diferença, na verdade você nem tem certeza se os olhos estão abertos ou fechados. As pessoas esbarram em você o tempo todo e, mesmo assim, você tem a impressão de que não há ninguém por perto e de que é a única ali, deixando seu corpo ir como quiser na batida da música, tão alta que provavelmente te fará acordar meio surda pela manhã. Mas você nem pensa nisso. A boca seca, você precisa de outra bebida, isso sim. Mas, antes, por um instante, tira os pés do chão outra vez, sempre no ritmo da dança, e conta... 2, 1...
Abre os olhos devagar. Os pés ainda estão no alto, mas a música parou. Tem um rosto conhecido ao seu lado, um copo de água na mão, a pressão do avião deixou seu ouvido quase surdo, mas você ainda consegue ouvir a aeromoça dizendo num inglês horrível que já vão pousar. Você está voltando para casa. E essa é a vida. A de verdade. A máquina toca de novo o chão. Seus olhos estão abertos. Você pensa que afinal é sempre bom chegar. Você sabe: essa é a vida. A sua. Será?

terça-feira, 5 de abril de 2011

As minhas meninas

(Eu sei Maria, que roubo o título do seu texto. Mas o uso é diverso. Eu constantemente surrupio palavras quando me despertam sentidos.)
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“Nada é muito terrível...”
As minhas meninas são outras. Aliás, é exatamente isso: as minhas meninas são outras, sempre outras, nunca nós, nunca aqui, tão distantes estão daquilo que podemos imaginar como suportável numa vida, ainda que longa. As minhas meninas são jovens, Maria, e dá pra ver tanta juventude saltando no brilho dos olhos delas. As minhas meninas às vezes riem solto e cheias de verdade, quase não parecem mais tão outras. As minhas meninas às vezes se distraem e choram, pedem colo, pedem desculpa, e se traem... se deixam descobrir de uma fragilidade inquietante, porque nós só esperamos – ou só suportamos – ver nelas dureza, um olhar raso, um riso banal.
A gente ouve falar nas meninas, mas dificilmente ouvimos as meninas falarem. Já parou para ouvir uma das minhas meninas falar? Ela não te conta das dores, ela te fala de sonhos, de cores, de belezas, as mesmas que você falava quando menina. Quase sempre é isso. E aí também minhas meninas não são tão outras. E eu rio quase com doçura ouvindo suas histórias.
Elas estão tão perto, Maria. As minhas meninas moram logo ali, só que do outro lado da ponte, onde “o mundo é diferente” como alguém já tentou alertar. É estranho, aqui tudo é perto e o outro lado parece conhecido, mas a gente se espanta quando olha só um pouquinho mais de perto.
Hoje uma das minhas meninas chegou com o olho esquerdo inchado, e quando eu a vi ela estava rindo e me perguntou se eu tinha guardado o desenho que ela começou na semana anterior. Guardei sim, claro. Ela quer terminar depois. Fica ouvindo música e batendo papo com outras pessoas, conta tudo como se fosse tão leve. O olho? Ah sim, a minha menina tem quinze anos e há uns cinco dias atrás apanhou de um policial na rua. Eu juro, quando ela conta nem parece tão pesado. Quando elas contam das outras meninas que também já apanharam tantas e tantas vezes, do policial, do namorado, do pai, da mãe, do padrasto... quando elas contam de como já foram de tantas formas violentadas, seja um estupro por um parente ou alguma senhorinha que se dá ao direito de chamá-la de vagabunda (sim, isso também é uma violência, senhorinha!), não parece, naquele instante, que na minha cabeça e no meu corpo de menina de quinze anos aquilo seria tão devastador. Quando uma menina conta que foi estuprada por três caras aos doze anos, ou molestada pelo pai aos quatro, ou espancada pela mãe desde sempre, etc, etc, etc... não parece tão incrível que a vida possa seguir, que aquelas risadas consigam sair tão verdadeiras, tão cheias de força, que o peito se encha de ar ainda, que ainda brilhem os olhos. “O pulso ainda pulsa e o corpo ainda é pouco”.
Hoje uma das minhas meninas me deu vontade de chorar... eu que sou tão dura pra isso... e só agora, já em casa, longe outra vez, eu consigo assimilar. Vontade de chorar de raiva, de dor, de compaixão, por me sentir tão pequena. Hoje essa menina me deu vontade de largar tudo, parar o mundo e descer, ao mesmo tempo em que quis gritar pra todo mundo ouvir que as minhas meninas existem, e de cuspir na cara do policial e da senhorinha.
Mas nada disso vai acontecer. Amanhã tem outra menina, e depois outra. E elas são tantas, e a gente sabe tão pouco, e o tempo vai tão rápido. As minhas meninas seguem, e você bem sabe, elas nem são minhas, é só essa vontade que me deu hoje de sair colocando curativo em todas as feridas delas e de poder dizer com voz calma e segura: já passou, vai sarar.
“Nada é muito terrível. Só viver, não é?”

quinta-feira, 31 de março de 2011

Corra Lola



Corra Lola, corra. Vê se alcança aquela pontinha do céu que ontem você viu. Vê se consegue provar ainda aquele gostinho do paraíso. Eu juro Lola, tastes like heaven. E vicia. Deixa a boca cheia de um gosto doce que eu não sei bem dizer com o que parece.  (Sabe quando você prova só um pedacinho da melhor sobremesa? Fica aquela vontade incontrolável de mais um pouco. Sabe aquele beijo que, depois de muito ensaio, só vem no fim do dia?)
Um gosto que parece um pouco com o tempo, com ontem, com anos atrás, com logo mais, mês que vem, eu acho. Gosto que me lembra vento, que passa de leve pelo rosto antes de chegar à boca. Gosto que parece pele tatuada cheia de frases pelo corpo. Parece sangue, Lola. Parece música, alto e vibrante. É gosto de uma língua nova, que eu ainda não conheço e fico ouvindo extasiada. Tem gosto de muitas folhas espalhadas pelo chão. De mãos que nervosas cortam retalhos que não foram ou ágeis desenham os contornos de um corpo. Tem gosto de nuvem ou de algodão doce (que em minha opinião desde criança, sãos gostos iguais). Gosto de terra úmida tão pisada e repisada.
Não fica aí parada olhando para o teto. Eu juro, Lola, tem gosto de vida. Não fica aí parada olhando pela janela, não fica aí parada só pensando em encostar-se ao ombro dela. Não fica parada olhando curiosa e descrente a cara de quem já provou. Não faz esse jeito blasé de quem não viu é nada. Estica um pouco mais a língua. Experimenta dobrar-se um pouco mais. Você não é feita só de sorte e acasos Lola, mas também de ousadia, de não saber, de arremessos e saltos improváveis, de pedaços e de inteiros.
Vem Lola, me dá a mão e tenta ver um pouquinho desse sonho, que em algum lugar dentro de mim eu guardei tão escondido que não consigo achar. Procura Lola, mas se encontrar não me conta onde está, porque a graça também é procurar e ficar tonta de alegria ao encontrar outra vez.

domingo, 20 de março de 2011

"O mais profundo é a pele"



Sou tão colorida e caleidoscópica quanto cinza e opaca. Mantenho os pés bem firmes no chão enquanto quanto flutuo por aí. Tenho tantas lágrimas presas quanto risos soltos, ou o contrário, quem sabe: tantos risos abafados quanto lágrimas espalhadas por aí. Tantas estórias quanto silêncios afogados no travesseiro. Sou tanta entrega quanto desconfiança. Sou dura como uma folha de papel, e me deixo escrever e rabiscar na esperança de que tantas linhas acabem por encontrar um rumo. Eu resisto a avalanches, mas soçobro com uma só gota.
Edifico mundos, mas sou como areia. E mesmo para mim, é muito difícil saber quando e onde estou. Eu me perco constantemente.
Eu passeio entre extremos, amando as intensidades, mas morrendo de medo de ser carregada num turbilhão. Assim, sou pura mansidão, mas meu equilíbrio só se mantém por uma quase lunática volúpia. Amo com todas as garras escondidas em meus cabelos. E odeio apenas no ontem, nunca no presente.
Sou raivosa, apaixonada, chorona, fria, calma, determinada e ponderada. Entendo pouquíssimas coisas. Até mesmo, apesar do que digo, eu não entendo os opostos, mas não acho que se atraiam. Acredito que as aparências não enganam, nós é que as vemos da forma errada. Tudo que precisa ser visto, dito e mostrado, está ali, o tempo todo.
Peço perdão, mas nunca me arrependo. Tenho tanto medo de me ver exposta, que saio me gritando por aí, e mostro tudo aquilo que queria esconder. Eu odeio despedidas e dificilmente aceito derrotas. Mas sei que é o fim, e sem mais o que dizer, retiro-me do recinto.

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Imagem: Vik Muniz

terça-feira, 1 de março de 2011

Era hora


Já era hora meu amor. Já era hora e ele não via, Maria também não via.
Era hora de separarem-se os corpos, virar os olhos para lados opostos, e andar, andar sempre mais um pouco. Hora de acordar do sonho.
Maria leva um susto quando olha o relógio e vê quantas horas se passaram desde então.
Agora, já de pé,o jeito é tentar ser firme. De vez em quando, surpreender-se ainda com uma lágrima que cai sorrateira, ligeira. Ela queria cair e Maria não deixava, Maria não deixava e ela voltava pra garganta, até que Maria a jurasse esquecida, engolida; aí ela cai.
Repetir até começar a (quase) acreditar que a felicidade pode ser reencontrada em outra noite. Repetir até começar a sentir-se (quase) feliz. Repetir que é possível, porque é preciso seguir.
É hora agora de seguir; “navegar é preciso, viver não é preciso”.  Viver é aquela coisa doida, aquele turbilhão, aquela intensidade latejante, dormir um pouso mais pra escapar da sanidade. Mas pra quem deve seguir navegando não se pode mesmo esperar muito mais que só um quase, certo?
Nem sempre é assim. Há dias em que ela (quase) acredita de verdade, até se ver surpreendida por aquela lágrima que havia esquecido de cair (ou será que Maria ainda produzia lágrimas novas?). Maria está pessimista hoje, ela sabe.
Deixe estar.

http://www.youtube.com/watch?v=US54UI_UOUQ&feature=related



Figura: La Toilette - Toulouse Lautrec

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Caso Pluvioso

A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.

A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.

Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!

ela chovia em mim em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.

Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!

Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia – em vão – pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira maria, chuvadonha,
Chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Pára! E ela, chovendo,
poços d’água gelado ia tecendo.

Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,

e era o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvisco.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando

contra essa chuva, estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,

e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,

e maria chovendo. Eis que a essa altura,
Delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, maria! – e ela parou.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Je veux te dire que...

Eles se encontraram depois de um tempo de desencontro. Duas folhas soltas. É como se tempo não houvesse. Depois que Alice pulou naquele buraco e tomou o comprimido, não sabe mais o tamanho real; seria o mundo de antes a verdade, ou pura ficção? De repente, faz mais sentido um coelho atrasado, um chapeleiro aloprado, uma rainha que corta cabeças. Copas fazendo ronda em volta do relógio que bate a hora do chá. Sempre um pouco atrasado.  De repente, queremos apenas nos sentar para esse chá de faz de conta. Um pouco de leite? Me passa o açúcar? Bom? Sim, muito bom. E isso é o real. Esse estado breve de imaginação, de semi sonho, rodeado de tantos sons que vêm dos outros, vêm das ruas. O enraçado é que o fato de virem tantos sons de fora, faz o fora parecer ainda mais irreal, mais fora; ele é só o cenário. Aqui dentro, o chá. Sempre um pouco adiantado. Antes ainda de outra vida começar. Não era ainda para estarmos aqui? Corremos? Perdemos? Caímos quantos? A gente não sabe se corre ou se vai muito devagar. A gente vai meio cego em meio à cidade tomada. A gente vai de mãos dadas, a gente se perde, se acha, se esbarra, se segura em outro ponto. De repente, um que parece tão seguro. De repente, ela escorrega outra vez. De repente, pensa que acordou do sonho, como se dessem um beliscão. Daí, tem dúvida outras vez. Acordou? Ou apenas começou a dormir? Qual entre esses estados de imersão é o sonho? Existe algo que não seja? Ou é tudo um sonho, dentro de outro sonho, dentro de outro sonho, dentro de outro... Importa? Importo eu? Alguém? Neste instante, ela pensa que não dá a mínima. Ela quer viver nesse estado de sonho, sem pensar se é real, se vai acordar cedo ou tarde, chegar adiantada ou atrasada para o chá. Caso em algum momento, isso deixe de parecer real, ela entra em outro sonho, pede outro chá. Mais açúcar?




(Puis ce silence qui me fait froid dans tout le coeur)