sexta-feira, 24 de dezembro de 2010


O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.
Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.
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Aplastamiento de las gotas

Yo no sé, mira, es terrible cómo llueve. Llueve todo el tiempo, afuera tupido y gris, aquí contra el balcón con goterones cuajados y duros, que hacen plaf y se aplastan como bofetadas uno detrás de otro, qué hastío. Ahora aparece una gotita en lo alto del marco de la ventana; se queda temblequeando contra el cielo que la triza en mil brillos apagados, va creciendo y se tambalea, ya va a caer y no se cae, todavía no se cae. Está prendida con todas las uñas, no quiere caerse y se la ve que se agarra con los dientes, mientras le crece la barriga; ya es una gotaza que cuelga majestuosa, y de pronto zup, ahí va, plaf, deshecha, nada, una viscosidad en el mármol.
Pero las hay que se suicidan y se entregan enseguida, brotan en el marco y ahí mismo se tiran; me parece ver la vibración del salto, sus piernitas desprendiéndose y el grito que las emborracha en esa nada del caer y aniquilarse. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adiós gotas. Adiós.


Trecho de Histórias de Cronópios e Famas, de Júlio Cortázar´,
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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010




Eu queria comer essa hora.

Queria comer essa hora de agora, como se ela fosse uma ameixa, toda cor de vinho, sumarenta, quase explodindo de tanto querer-ser.

Morder o relógio, os ponteiros, mesmo o ar em volta dessa hora. Mastigá-la, comê-la, seduzi-la. No entanto, um minuto mais e ela acaba.

Eu espero o dia seguinte, espero que a hora volte. Quando a vejo outra vez é aquele mesmo sentimento: exaltação, ansiedade, desesperp, o sangue quase saltando das veias, tanta intensidade de vida querendo jorrar de mim.

Sei que tem gosto enfim, sei que tem gosto novamente, e fico esperando poder prová-lo. Pego-me imaginando e, enquanto isso, pronto; ela se foi, acabou-se. Resta-me só o amanhã.

Não entende o que eu digo? Não precisa. Só penso em dividir um pouco isso que sinto ao contemplar o relógio e vê-la ali marcada, de novo cheia de sensações. Não é a hora do presente, não é a hora em que algo acontece, é a hora do instante que vem logo antes do presente, do vir-a-ser, aquela em que a consciência de que se sente, de que se é vivo, de que se respira, ganha força, invade e toma tudo que encontra.

Depois, são as horas que se seguem, depois é retomar a vida, depois é o ritmo de ontem que tende a voltar. Pouco importa o que vem depois. Eu quero comer essa hora de agora, torná-la parte de mim, esmiuçar o seu segredo de antecipação. Eu quero tomar o suco que escorre dessa hora e já me derreto toda em segredos ainda não formados a partir dela. Eu quero comer essa hora e poder esquecer do que não será depois.






("O resto é mar, é tudo que eu não sei contar")
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domingo, 5 de dezembro de 2010

Volaná e Valené

“desamparada, ocorriam-lhe pensamentos sublimes, citações de poemas de que se apropriava para sentir-se no próprio coração da alcachofra, por um lado, I ain’t got nobody, and nobody cares for me, o que não era certo, já que pelo menos dois dos presentes estavam mal humorados por causa dela e, ao mesmo tempo, recordou um verso de Perse, algo como Tu est là, mon amour, et je n’ai lieu qu’en toi, onde a Maga se refugiava, apertando-se contra o som de lieu, de Tu est là mon amour, a suave aceitação da fatalidade, que exigia fechar os olhos e sentir o corpo como uma oferenda, algo que qualquer um podia tomar e manchar e exaltar, como Ireneo, e que a música de Hines fazia confundir com manchas vermelhas e azuis que dançavam por dentro de suas pálpebras e que se chamavam, não sabia bem por que razão, Volaná e Valené, à esquerda Volaná (and nobody cares for me), girando loucamente, em cima Valené, suspensa como uma estrela de um azul pierrodellafrancesca, et je n’ai lieu qu’en toi, Volaná e Valené, ... essas grandes carícias nervosas, I ain’t got nobody, nas costas, nos ombros, os dedos por trás do pescoço, entrando as unhas no cabelo e retirando-as pouco a pouco, um turbilhão final, e Valené se fundia com Volaná, tu est là, mon amour and nobody cares for me”.

(trecho do livro O Jogo da Amarelinha, Júlio Cortázar)

***
Volaná

Despertou porque ela se contorcia a noite toda resmungando sons indecifráveis. Estranhou um momento o corpo de mulher estendido ao seu lado e se levantou. E o que fazer à uma hora dessas? Acender um cigarro e fumar na janela, percebendo que alguém no andar de baixo esquecera a televisão ligada e concentrar-se num ponto cego da rua; o cenho franzido.

Seus pensamentos se esfarelavam como pequenos pedaços de um tecido muito fino que se espalhavam pelo chão do quarto. Ele olhava esses pedacinhos todos, pesaroso, uma lástima vê-los assim e não saber juntá-los, costurá-los novamente num pano contínuo. Ficava olhando imóvel, um soluço preso bem no meio dos dentes. Quem sabe não seria preciso chorar até transbordar o quarto e fazer boiar todos aqueles retalhos?

Quis acender outro cigarro e no movimento de alcançar o maço derrubou com o braço um livro que se apoiava na beira da estante. Ela despertou com o barulho e encarou-o assustada. Tinha olhos marejados, sibila de águas, presságio de lágrimas. Ou seria preciso que alguém chorasse por nós? – pensou olhando-a bem enquanto ela se esfregava na cama, epidermicamente se preparando para levantar. Levantou- se e saiu do quarto dirigindo-lhe algumas palavras incompreensíveis, naquele idioma que ela inventara para se comunicar nas madrugadas. Agora era esperar que ela resolvesse voltar à linguagem comum e ambos poderiam, de comum acordo, dar novo início à trapaça.
Passava a mão pela testa enxugando um suor gelado; quão fundo teria que se cortar para encontrar substância; um começo, um fim, ou mesmo um nome para a coisa. Escrever na pele registros de noites insones para depois rasgar letra a letra extraindo sentidos viscosos de sangue pingando. Quantas vísceras teria que comer em frente ao espelho nu até chegar a uma matéria palpável? Arrancando não sabia bem o quê, mas arrancando até o osso. O que alcançava o vazio?

Ela cantava na cozinha e interpunha em sua cabeça o som de sua voz e de vidro contra a pia. “Ela poderia se calar se com um grito eu...” Por um momento... quem era ela mesmo?

je ne vais plus pleurer
je ne vais plus parler

Uma mão firmemente fechada sobre uma barra metálica...

ne me quitte pas
ne me quitte pas

... a outra já solta pendendo no vazio.

Poderia recuar agora de todo o quarto, traçar em torno de si uma circunferência rejeitando todo o fora, relegando-se a um canto mais fundo, o mundo debaixo das pálpebras que os olhos voltados para dentro reconheciam e acatavam em silêncio.

Foi só depois que abriu os olhos e a viu parada ali, o corpo recostado na soleira da porta, uma xícara de café na mão, acompanhando com os olhos os movimentos dos pedaços de pano que se erguiam do chão e flutuavam pelo quarto. Até que ela sentou na cama – os retalhos se ajeitavam novamente no chão – e começou a lhe narrar o sonho que tivera. Voltara a usar o idioma comum. E enquanto contava, tremia um pouco e chorava de leve. Agora era preciso parar um pouco, esquecer tudo, guardar os retalhos num canto, passar as mãos pelos seus cabelos, tentar acalmá-la, todas essas coisas, “essa leve tristeza satisfeita de voltar a ser o de sempre, de continuar, de se manter flutuando contra o vento e a maré, contra o chamado e a queda”.

A não ser que.

***


Valené

Estava sendo sugada para dentro do retrato que cada vez parecia maior, seu corpo todo manchado, desfeito em pigmentos que se soltavam um a um em direção ao quadro. Desesperava-se; queria conte-los, mas já não tinha mãos, pediria ajuda, mas perdera a boca...

Um barulho forte a fez acordar, um peso caindo, “ele ia subitamente me esmagar”. Acordou num salto, a sensibilidade toda na cavidade auricular. E ele parado fumando em frente a janela, mariposa de insônias. Ela se perguntava por que ele não a havia ajudado quando o retrato a absorvia.

Saiu da realidade impressionista e adentrou o sonho do quarto.

- Vou fazer um café – disse levantando-se.

Je t’inventerai
des mots insensés
que tu comprendras

Docemente pisando as imagens sonhadas. Calando-as à força do blues.

A vida, seqüência caótica de quadros sobrepostos. “Moça semi-desperta preparando café” – quadro impressionista no qual predomina a cor azul dando o tom da atmosfera. A exatidão do ambiente contrasta com a vaguidão no olhar da moça captado pelo artista. Uma tristeza pálida.

Olhava o café. “Se minha vida escorresse assim... eu não me daria mais ao trabalho de ser sólida. Repousaria num canto o meu esforço de ser uma, de me manter junta, toda manhã colando caco a caco e voltando a existir. Assistiria meu corpo abandonado cair e cair e cair”. Pegou a xícara e caminhou de volta ao quarto.

Parou um instante para observá-lo da porta. Ele de olhos fechados parecendo pesar o ar de cada respiração. E ela dando voltas inúteis pelo quarto com os olhos (havia algo pairando no ar? Uma fragilidade tão iminente...).

Ele abriu os olhos e ela se sentou ao seu lado. “Então meu corpo ia se soltando como se fosse feito de vários riscos de tinta que de repente se soltavam de mim, atraídos por um quadro bem grande que pendia naquela parede...” – narrava-lhe o sonho que lhe perturbara a noite. As mãos dele pendiam sobre seu rosto como trapos, ajeitando-lhes o cabelo, enxugando-lhe as lágrimas. O tempo ia se seguindo a leves tropeços, correndo esfumaçado. O pêndulo cumpria o seu vaivém ajeitando as coisas em lugares próximos e convenientes.

Até que.


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“Fazíamos amor como dois músicos que se juntam para tocar sonatas... era assim mesmo, o piano ia por um lado e o violino ia pelo outro, e disso saía a sonata, mas veja, no fundo, não nos encontrávamos...

... mas as sonatas eram tão bonitas”


(trecho do livro O Jogo da Amarelinha, Júlio Cortázar) 

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